Curadoria

Somos todos assim, ’This is Us’

By 16/10/2020 fevereiro 25th, 2021 No Comments
this is us

Neste momento tão difícil que estamos vivendo, me darei o direito de escrever sobre algo não menos importante e que está em xeque em épocas de isolamento social: as relações familiares. Para isso, não vou mencionar a minha família ou a sua, muito embora todos nós estaremos presentes, o tempo todo, no texto que segue. Afinal  “Estes Somos Nós” ou “This Is Us”.

Se você ainda não sabe do que estou falando ou de “quem” estou falando, vou facilitar as coisas. This Is Us é uma série norte-americana transmitida aqui no Brasil pelo serviço de streaming da Amazon, o Prime Video e pelo canal FOX nas suas diferentes plataformas. A série é uma crônica da relação de três pessoas nascidas no mesmo dia, no caso a história dos trigêmeos Kevin, Kate e Randall. Sua narrativa habita momentos históricos diferentes: passado, presente e futuro. Mesmo antes da estreia, a série já havia quebrado recordes de audiência: o primeiro trailer foi o mais assistido das estreias de 2016/2017. Chegou a ser visualizado mais de 70 milhões de vezes no Facebook em menos de duas semanas.

This Is Us descreve a dinâmica e os elementos da família Pearson, com os quais todas as famílias podem se identificar, de uma maneira que nunca havia sido feita antes. Dentro de um gênero televisivo que parecia não ter espaços para grandes novidades, a série é para ser assistida no detalhe das cenas e diálogos cuidadosamente montados.

Para mim, o argumento da série é completamente psicanalítico (os terapeutas de família que me desculpem a licença poética). A série nos joga de cabeça na história e intimidade dos personagens, nos fazendo conhecer detalhes que, muitas vezes, eles mesmos desconhecem ou não lembram. E são justamente esses detalhes, assim como acontece conosco, os decisivos nas suas trajetórias. Os Pearsons não são “os donos da própria casa” e demonstram estar a mercê de uma série de sentimentos. Aí está uma das grandes sacadas de This Is Us: a humanidade dos personagens.

Jack, Rebecca, Kevin, Kate, Randall e todos os outros são essencialmente humanos com seus melhores e piores lados a mostra. A série explora o bem e o mal e tudo que houver no meio para cada personagem. Amamos um personagem e logo adiante o desprezamos, para logo em seguida amar novamente. Somos convocados a admirar como cada personagem é capaz (ou não) de pegar o limão mais azedo e transformar em uma limonada (só quem assistiu conhece a referência).

Nós amamos Jack porque ele é, na maioria das vezes, muito próximo do que habita nosso imaginário como um pai e marido perfeito. Mas em sua perfeição, ele nos apresenta um ser humano problemático que luta contra o alcoolismo. Rebeca coloca em tudo que faz uma doçura pessoal que se transforma em fragilidade. Randall é perfeito mesmo vindo de ambientes imperfeitos e carrega dentro de si uma bela parcela de egoísmo e competitividade. Kate substitui a tendência familiar adita ao álcool por uma compulsão alimentar e nos mostra como alguém pode ser tão frágil e destemida ao mesmo tempo. Kevin, o bonitão, nos faz desmaiar porque nos mostra que se pode ter fama e dinheiro e ainda assim se sentir incompleto.

A perfeição é uma ilusão e as mídias sociais são parcialmente culpadas por perpetuar a ideia contrária. Simon Sinek, etnógrafo, refere justamente a esta questão quando adverte que as redes sociais nos dão a oportunidade de “mostrar uma vida incrível, mesmo que (possamos estar) deprimidos” e que precisamos estar atentos a falácia de que a perfeição é alcançável (e quem ainda não alcançou está atrasado na corrida da vida).

Contardo Calligaris (que eu já mencionei aqui), um dos principais psicanalistas deste século, também escreve uma série de textos e crônicas sobre a exigência de perfeição e felicidade que os tempos atuais impõem. Em um dos comentários que mais gosto sobre a temática da depressão e a busca da perfeição, Calligaris afirma que “a depressão se tornou uma doença tão importante, tanto em relação ao número de doentes quanto a gravidade do sofrimento, porque ela é justamente um pecado contra este espírito do nosso tempo”. E continua: “quem se deprime não pega peixes e ainda menos sobe no bonde andando”. A busca insana pela perfeição impossível deprime e a depressão cristaliza o deprimido em uma posição de impossibilidade. Ficamos aprisionados nesta exigência moderna.

Certamente eu sou um pouco tendenciosa, mas realmente partilho a ideia de que há pouquíssimas coisas negativas em This Is Us. Umas das críticas que li descreveu como “emocionante, compassiva, comovente e uma joia dentro das plataformas de streaming. This Is Us explora nossa lembrança e nos faz pensar em nossas próprias famílias, nossa memória, nossas buscas e nossa história.

Aliás é disso que se trata a série em última instância: como cada um escreve a própria história. As três temporalidades são sempre amarradas por um nó que nos deixa claro como a vida não é apenas vivida no hoje. Somos parte de uma trajetória, personagens de uma história maior que nos precedeu. This Is Us nos coloca o questionamento de como vamos nos relacionar com essa narrativa da qual precisamos nos apropriar. Como diz Jean-Paul Sartre: “ Não importa o que fizeram de mim, o que importa é o que eu faço com o que fizeram de mim” e esta magnifica série nos coloca de frente com a questão de que o mundo é cruel, a vida é injusta e a sobrevivência psíquica vem da capacidade de se reinventar e tolerar as frustrações. A saúde mental depende da capacidade de enfrentar desafios e obstáculos normativos e inesperados. Veja bem: depende da capacidade de “ENFRENTAR!”, com as ferramentas próprias e possíveis a cada um.

This Is Us nos lembra de uma forma doce e poética de que nenhuma família é perfeita, nenhum relacionamento é perfeito e nenhum ser humano é perfeito. Trata-se de aceitar uns aos outros e a nós mesmos com nossas qualidades e demônios.

 

Por ERIKA JUCHEM GOELZER – Psicóloga, Psicanalista, Especialista e Mestre em Psicologia com mais de 15 anos em experiência clínica.  Supervisiona profissionais e atende on-line brasileiros em todo país e exterior. Colaboradora do jornal Diário de Viamão, Blog Brasil com Z e rede de escolas Lápis de Cor.

Texto original aqui.