Governança e Família EmpresáriaXestaques

Os fluxos econômicos na família empresária

By 30/04/2019 fevereiro 6th, 2020 No Comments
econômicos

Confira na íntegra o artigo do argentino Diego Bercovich sobre Os fluxos econômicos na família empresária:

  1. Introdução

O objetivo desse artigo é revisar os fluxos econômicos que permeiam as famílias empresárias e suas correspondentes, as empresas familiares. São questões especialmente delicadas, uma vez que estão ligadas também a segredos, dívidas afetivas e questões jurídicas.

Nessa leitura, iremos entender as diferenças entre:

  • aposentadoria, salário, lucro, ajuda familiar
  • ajudar, dar trabalho, oferecer emprego
  • benefícios empresariais e benefícios familiares
  • necessidades e expectativas
  • diferentes momentos de vida

As remunerações – e os fluxos econômicos, como consequência – ocupam lugar de destaque. Ao lado da sucessão, elas estão entre as principais preocupações dos proprietários de empresas familiares.

Como todo fluxo, os fluxos econômicos ficam mais complexos à medida que as famílias e suas empresas crescem. Essa complexidade não aumenta de maneira linear, e sim exponencial, uma vez que responde ao número de relações estabelecidas entre os integrantes das famílias. Basta pensar na diferença de critérios entre um fundador e seus filhos a cada geração, e nas políticas que devem ser estabelecidas entre as gerações de primos para sustentar uma empresa familiar de terceira geração.

Viver com simplicidade e remunerar o trabalho desde que um filho ou uma filha entram pela primeira vez no negócio podem ajudar a alinhar as expectativas com a realidade futura.

Falar sobre salários é também uma forma natural de ajudar os filhos a começarem a planejar suas carreiras dentro do negócio e a se prepararem para a futura estrutura da administração familiar.

  1. Situações comuns

Há algumas situações que costumam gerar conflitos. São elas:

  • Confundir a distribuição de lucro entre familiares acionistas com a retribuição oferecida a parentes que trabalham na empresa, seja como funcionários ou diretores.
  • Guardar a sete chaves os valores de salários dos familiares, ao ponto de que isso dê espaço a elucubrações e fantasias.
  • Desconsiderar as demandas de parentes acionistas que não trabalham no negócio. Eles podem questionar as remunerações dos familiares que trabalham na empresa e exigir participação nos lucros, algo que muitas vezes se opõe ao próprio reinvestimento de um negócio que reclama tudo para si para se fortalecer e se firmar no mercado.
  • Oferecer uma remuneração atraente para contratar ou reter um membro da família altamente qualificado ou com experiência fora do negócio, desequilibrando a equidade salarial da empresa.
  • Continuar pagando salário ao proprietário do negócio já aposentado.
  • Entender a empresa familiar como uma fonte de renda pessoal segura e por isso exigir um emprego nela, mesmo quando não houver trabalho disponível adequado às qualificações dessa pessoa.
  • Falta de transparência sobre as remunerações dos membros da família, o que pode gerar percepções equivocadas ou suspeitas de práticas não igualitárias, privilégios ou preferências.
  • Apelar para benefícios incomuns como forma de compensar desigualdades salariais entre familiares.
  • Remunerar familiares com os quais se sente que há uma dívida, seja afetiva ou de outra natureza.
  1. Fluxos econômicos na empresa familiar e na família empresária

Diferentes fluxos econômicos permeiam as empresas: cobrança de clientes, pagamento de fornecedores, pagamento de impostos, participação nos lucros, pagamento de honorário a diretores, ou pagamento de funcionários. Os mais relevantes em uma empresa familiar são esses últimos. Eles estão relacionados aos diferentes papeis que podem ser assumidos por um familiar: acionista, diretor ou funcionário.

Outros fluxos econômicos vivenciados pelas famílias são: ajuda a parentes em situação de necessidade, financiamento de empreendimentos de familiares, empréstimos a estudantes ou famílias recentemente formadas, por exemplo.

Por fim, existem os fluxos econômicos que circulam pelos patrimônios, e que consistem basicamente na receita gerada em forma de lucros, benefícios etc.

Veremos os principais a seguir.

 3.1 Remuneração por trabalho

Remuneração é a contrapartida recebida por um funcionário da empresa por trabalhar nela. A remuneração tem duas vertentes: fixa e variável.

remuneração fixa é a recebida pelo trabalhador de maneira habitual e permanente.

Já a remuneração variável é a que consiste essencialmente em ajustar o pagamento de salários aos objetivos estratégicos da empresa. Ela atrela remuneração a resultados, introduz o conceito de oportunidade e risco e reconhece as conquistas pessoais. Entre os conceitos que compõem a remuneração variável estão os incentivos, as bonificações e as gratificações.

Os benefícios recebidos por um funcionário são divididos entre benefícios quantificáveis e benefícios não quantificáveis. Os primeiros se resumem a um valor em dinheiro. O pagamento de um plano de saúde é um benefício quantificável. Já a possibilidade de não trabalhar no dia do aniversário é um benefício não quantificável.

compensação é a soma da remuneração fixa com a remuneração variável e os benefícios quantificáveis.

 3.2 Honorários de direção

O comitê executivo ou Conselho de Administração/Consultivo de uma empresa é um órgão colegiado responsável por definir a estratégia da empresa. Ele controla sua execução e responde pela empresa perante acionistas, Estado e outros grupos de interesse (stakeholders).

Cada integrante do comitê executivo pode receber honorários por realizar sua função.

Dirigir a empresa não significa trabalhar nela. Mas pode acontecer de alguém da direção ser também um funcionário, e nesse caso receber remuneração por cada uma dessas funções.

 3.3 Os lucros dos acionistas

Parte dos recursos econômicos de uma família empresária está investida na empresa familiar. A empresa gera receita. De acordo com a política de distribuição de renda, parte dela é reinvestida na empresa para financiar seu crescimento, sua atualização tecnológica, o desenvolvimento de novos produtos ou mercados etc. O restante é distribuído como lucro entre os acionistas.

Outra parte dos recursos econômicos de uma família pode estar investida em ativos que geram renda: empresas similares àquela da família – mas que ela não controla –, imóveis alugados, produtos financeiros etc.

Por fim, uma parte do capital é usado em residências particulares, por exemplo, o que não gera renda derivada de aluguel.

Em resumo, o esperado é que o capital investido na empresa familiar ou em ativos que produzam receita gere um fluxo de dinheiro proporcional ao risco assumido, que é distribuído entre seus acionistas.

 3.4 As ajudas familiares

Uma das características naturais da família é o apoio mútuo. Quando algum parente passa por uma situação de necessidade, é possível que a família decida ajudar de diferentes formas, seja oferecendo um lugar onde ele possa morar ou ajudando a comprar medicamentos. Outra ação bastante comum é propor uma vaga de trabalho na empresa familiar.

 3.5 Financiamento de empreendedores ou estudantes

Na vida atual, muitas atividades requerem desembolsar dinheiro às vezes não disponível: empreender ou estudar, por exemplo. A família pode colaborar como investidora no empreendimento de um parente jovem que não participa do negócio por diferentes motivos ou emprestar dinheiro para aqueles que estudam.

 3.6 Remuneração pelo trabalho para a família e seu patrimônio

Famílias com patrimônio comum relevante costumam ter estruturas próprias de gestão, como conselhos familiares ou “family offices”, que decidem o pagamento aos membros da família com função administrativa nessas estruturas.

 4. Políticas e práticas

Uma vez entendidos os fluxos econômicos circulantes nesse sistema, passemos às diferentes políticas e práticas em sua gestão. Algumas práticas são excludentes entre si, e representam diferentes maneiras de resolver um mesmo problema.

 4.1 Pagar o funcionário de acordo com o valor de mercado

Um dos problemas mais comuns quando parentes trabalham na empresa é a distorção entre as remunerações.

Pagar de acordo com o valor de mercado é o critério mais objetivo. O funcionário recebe de acordo com o valor de mercado da função que exerce. Essa política, no entanto, demanda certo grau de formalidade ou maturidade na organização, e exige descrições de cargos, organogramas bem estabelecidos e comparação com as empresas da concorrência.

O mais difícil em se estabelecer um valor de mercado acontece quando as responsabilidades do funcionário não são claras. E isso não é incomum nos primeiros níveis da empresa, quando um funcionário exerce múltiplas tarefas não definidas anteriormente, e o caso se torna ainda mais complexo à medida que as responsabilidades desse funcionário aumentam.

Além disso, nessas situações, não raro a confiança supera o controle por indicadores, e a remuneração de um parente considerado por sua lealdade não pode ser medida em relação aos valores de mercado.

A entrada de uma nova geração, por exemplo, pode facilitar a implementação de uma nova política de remuneração baseada nos valores de mercado. Normalmente isso acontece a partir da chegada da terceira geração. A segunda geração, normalmente no topo da organização, ainda tende a ser remunerada de acordo com um critério de padrão de vida equivalente, o que independe do valor do cargo ocupado. Veremos isso a seguir.

 4.2 Remuneração equivalente aos filhos

Como vimos, pagar um funcionário de acordo com o valor de mercado demanda um mínimo de formalização, para que se possa comparar o mesmo posto em empresas da concorrência.

Essa situação muitas vezes é inexistente quando a empresa tem um perfil informal. Deve-se, então, recorrer a outras formas de remuneração, como por exemplo pagar o mesmo valor aos filhos.

Independentemente da função que exerçam na organização, entende-se que, para além das qualificações e responsabilidades – muitas delas ainda potenciais –, os filhos têm nível parecido de compromisso com a empresa familiar. É com base nesse critério que a remuneração pode ser a mesma.

Quando cada irmão cumpre com seu papel no processo de sucessão, o sistema de remuneração equivalente se torna mais simples. E evita um esforço precoce de formalização, possibilitando que a maturidade venha naturalmente no curso de desenvolvimento da empresa.

 4.3 Renda mínima para os núcleos familiares

Essa prática consiste em colaborar com cada núcleo familiar para estabelecer um valor mínimo de ingressos adequado ao nível e padrão de vida desejados. Essa colaboração é definida pela própria família, e conta com os recursos do patrimônio não empresarial, ou seja, aqueles que não são vinculados à empresa familiar. Nesse caso, pode ser definido um valor mínimo de renda aceitável para cada núcleo familiar, e se pode complementar essa renda caso os beneficiários não atinjam esse mínimo com seu trabalho.

 4.4 Distribuição dos lucros 

A distribuição de lucros em uma empresa familiar costuma responder à pressão de acionistas que não trabalham nela, mas que esperam uma compensação pelo investimento de seu capital. Normalmente, essa situação surge a partir da segunda ou terceira gerações, concorrendo com a política de reinvestimento dos lucros associados ao crescimento da empresa.

As formas clássicas de se calcular a distribuição dos lucros são:

  • Valor fixo anual, o que ajuda os acionistas a planejarem sua renda;
  • Porcentagem fixa sobre a receita ou sobre o valor da empresa;
  • Valor mínimo fixo, acrescido de um valor variável de acordo com o desempenho.

4.5 Rendimentos do fundador aposentado

Chegamos ao momento da empresa em que o fundador continua na ativa, mas seus filhos se preparam para assumir a direção. O patrimônio não vinculado à empresa e a previdência pública serão suficientes para garantir um padrão de vida seguro e independente do ponto de vista financeiro quando o fundador se aposentar?

É uma questão determinante que mostra como deve partir da família a organização de um plano financeiro e patrimonial pessoal para o predecessor e o cônjuge.

Esse plano pode significar um especial esforço em termos de custos trabalhistas para a empresa durante a transição.

Sem a devida atenção a essa questão, existe o risco de que seja necessário manter a remuneração mesmo quando a pessoa já tenha deixado sua função. E isso, por consequência, influencia os gastos trabalhistas, altera indicadores etc. Caso seja necessária a ajuda da família (uma vez descontado o que se recebe da aposentadoria pública), deve se considerar usar, então, o patrimônio não vinculado à empresa.

O predecessor, por sua vez, pode por algum tempo trabalhar como diretor não executivo, ou consultor externo, e receber por isso.

Outra alternativa é que o fundador venda sua participação na empresa ao longo de um tempo determinado, com a devida precaução de que a participação permaneça na família.

Essa situação pode se repetir quando chegar a hora da aposentadoria dos filhos. Planejar o cenário com antecedência será essencial para manter a saúde do sistema.

4.6 Racionalizar os benefícios oferecidos pela empresa

A empresa familiar oferece benefícios à família a partir do momento em que gera economias de escala, poupanças fiscais e custos mais baixos no geral. Mas o crescimento natural da família pode gerar excessos na complexidade administrativa, além de um nível inaceitável de gastos administrativos relacionados, ou abusos por parte de alguns familiares.

Alguns dos benefícios mais comuns são:

  • Contadores da empresa que preparam declarações pessoais de imposto de renda;
  • Uso particular do carro da empresa;
  • Possibilidade de retirar elementos da empresa para uso pessoal;
  • Designar funcionários para trabalhos de manutenção em residências particulares;
  • Entregar cartões de crédito corporativos para gastos pessoais.

É decisão da família eliminar esses benefícios, ou criar um escritório ligado à família, mas não vinculado à empresa familiar, para cuidar desses benefícios. É o family office. O custeio desses benefícios pode ser feito de maneira coletiva, pelo patrimônio familiar em conjunto, ou se pode direcionar a cobrança apenas aos núcleos familiares que utilizem esses benefícios.

O importante, aqui, é que a empresa fique livre de atividades que não fazem parte do escopo do negócio, para que se concentre apenas nele, e seu desempenho possa ser avaliado sem distorções.

 4.7 Provisão de ajuda familiar sem interferência na empresa familiar 

Empregar parentes que precisam de ajuda financeira, sem que haja justificativas no negócio para tal, é um caso particular de benefício oferecido pela empresa.

Não consideramos neste ponto uma razão de negócio justificada, como a de escolher familiares para cargos de confiança. Essa é uma situação natural nos primeiros momentos de crescimento da empresa, quando existe uma informalidade própria do empreendimento, e os mecanismos de controle por indicadores ainda não estão estabelecidos. Aí entendemos que não se trata de um benefício, mas de uma decisão empresarial apropriada.

Voltando, porém, à contratação de familiares sem nenhuma justificativa do ponto de vista do negócio, e realizada apenas tendo em vista a lógica de proteção da família a um parente necessitado, as boas práticas recomendam que a ajuda econômica não se dê em forma de salário da empresa, e sim a partir do patrimônio familiar em sua totalidade, ou do núcleo familiar que assim deseje.

 5. Conclusões

Como vimos, as três instituições – família, empresa e patrimônio – são permeadas por diferentes fluxos de dinheiro que circulam entre, no interior e no entorno delas.

A complexidade dessas relações aumenta à medida que as famílias crescem, assim como os negócios e seu patrimônio.

Por isso, prevenir, comunicar e estabelecer políticas costumam ser as melhores ferramentas para administrar as diferenças e seguir adiante.

Prevenir: É recomendável se preparar para os temas que surgirão conforme uma empresa passe da etapa do fundador para a dos irmãos, e depois para a dos primos, quando o patrimônio se diversifica e se divide em patrimônio empresarial, não empresarial e imobilizado, e quando o núcleo principal familiar dá espaço aos descendentes. É melhor encarar essas questões antes que o adiamento gere feridas difíceis de sarar.

Comunicar: As políticas e práticas relativas aos fluxos econômicos devem ser devidamente conhecidas por todos os integrantes da família. Isso se torna ainda mais crítico com o crescimento das famílias e com a chegada de novos integrantes. Como em toda instituição que se torna mais complexa, a formalização é algo inevitável. Assim surgem os conselhos familiares, os “family offices”, etc. A transição do estilo informal e centralizado no fundador para um modelo formalizado deve seguir um ritmo lento, mas sustentável, na qual a comunicação da base das decisões é essencial, e pode incluir ações de formação e capacitação sobre os conceitos utilizados, comparação com outras empresas etc. Assim como outras questões dessa transição, se espera que sejam as novas gerações as responsáveis por essa iniciativa, com o objetivo de avançar as propostas a serem aprovadas pelo conjunto da família em seus diferentes níveis de gestão.

Estabelecer políticas: O processo de acordos por consenso leva à elaboração de documentos como o protocolo familiar, que enuncia as práticas que serão adotadas, as políticas que devem ser seguidas, as normas a serem obedecidas e as próprias ferramentas de gestão que serão necessárias para esse objetivo.

 

*Diego Bercovich é formado em Sistemas e mestre em Administração de Empresas, atuou por muitos anos em Recursos Humanos, especificamente em Desenvolvimento Organizacional e Desenvolvimento Individual. Trabalhou como consultor independente desde 2001 e a dez anos faz parte da Equipe de Análise Institucional da Associação Argentina de Psicologia e Psicoterapia de Grupo. Diego também é membro do Instituto Argentino de Empresas Familiares (IADEF) e consultor de famílias empresárias.

O artigo Os fluxos econômicos na família empresária foi traduzido do espanhol para o português por Elisa Martins.